1.10.2006

O projecto de recuperação/reabilitação ou o massacre do Parque Gulbenkian



O Parque da Fundação Calouste Gulbenkian tem vindo a sofrer alterações desde 2002. Os cartazes espalhados ao longo dos percursos acusam o seu autor, o Professor e Arquitecto Paisagista Gonçalo Ribeiro Telles, um dos dois autores do projecto original, e parecem, ao mesmo tempo, tentar apaziguar os mais preocupados. A informação divulgada no site da fundação apenas enumera, brevemente e sem justificar, as intervenções de que o parque irá estar sujeito: "introdução de novos percursos, mais espelhos de água e novas espécies". Uma intervenção sobre o parque, que é considerado por muitos como o melhor de Lisboa, consegue ser perturbante ainda que esta seja pensada pelo autor.




A neutralidade dos percursos em plataformas de betão do desenho original tinha o privilégio de valorizar as experiências dos utilizadores em cada espaço atravessado. Os autores projectistas, o edifício, a Praça de Espanha, a Avenida de Berna, a cidade e o tempo diluíam-se na vegetação. E esta era generosa ao oferecer a todos que por lá passassem a autoria e a produção das experiências consoante a entrega de cada um. Para isso, contribuíam também os materiais inertes, como os bancos, a iluminação e o pavimento, que obedecendo sempre à mesma tipologia, permitia que tudo o resto se sobressaísse. Os espaços eram praticamente construídos pela vegetação, pelos seus ciclos vegetativos, pela forma como se densificava e tornava o ar mais húmido e sombrio ou se abria para assinalar uma perspectiva e projectar a luz sobre a superfície. Todos os espaços criados eram diferentes e referenciais mas encontrávamos uma unidade em todo o parque. Esta diversidade de espaços era unida, quase indiferentemente, pelo percurso de betão. No entanto, nenhum percurso estava desenhado aleatoriamente. As plataformas de betão permitiam chegar de um ponto a outro atravessando espaços sempre diferentes. E isto conseguia manter uma simplicidade brutal à leitura dos espaços. A transgressão dos limites criados pelo betão era entregue com total honestidade à nossa vontade. Nada nos impedia de espezinhar os Ophiopogons japonicus ou as Duchesnia indica no entanto reservávamo-nos para os relvados. Era um projecto que acreditava na liberdade e na individualidade de cada um.


As novas plantações (pinheiros em cima e gramíneas em baixo)

Quando começaram as alterações com a introdução de novas espécies, essencialmente sobre zonas de relvado, fiquei entusiasmado. As novas plantações de gramíneas, que, segundo me confirmou um viveirista frustrado de Sintra que as tinha tentado produzir e vender sem qualquer sucesso uns anos atrás, estão agora muito em voga entre os arquitectos paisagistas deste país, mas também de outras herbáceas, arbustos e algumas árvores enriqueceram o parque criando novos espaços e tempos onde eles eram inutilmente mantidos como estáticos tapetes verdes, ao mesmo tempo que contribuem para a clarificação dos relvados remanescentes. Estes tornam-se, assim, nos verdadeiros relvados usados enquanto tal, ou seja, como áreas privilegiadas para a ocupação intensiva.




As novas intervenções de recuperação/reabilitação
Pouco depois apareceram os espelhos de água circulares e os mini-lagos, as passadeiras em madeira com guardas de aço paralelas a percursos existentes e o aço-corten. O aço-corten... Esse maligno material é aplicado indiscriminadamente em bancos, lancis curvilíneos, nos espelhos de água e em estruturas que se parecem com pérgolas. Uma imagem caricata é um banco em aço-corten sobre uma plataforma de aço-corten que se estende por de baixo dos ramos de uma cerejeira observando saudosamente um pequeno lago envolvido com seixo rolado branco. Parece um autêntico tumor mascarado com água de malvas. Os espelhos de água circulares assemelham-se a quistos de fetichismo projectual que nós temos que aturar, e a passadeira a um acto de desespero por atenção. Estas intervenções são tão forçadas e denunciadas que empobrecem o parque. Constrói-se previsibilidades e reduz-se comportamentos a dois ou três modelos predefinidos. O acto projectual sobrepõem-se à experiência do utilizador, e este acto é tão superficial como supérfluo. Obviamente, o autor deste projecto de recuperação/reabilitação não é o mesmo que projectou o parque Gulbenkian.

5 Comentários:

Blogger samuel disse...

quando os espaços que se tornam 'património', pelas suas qualidades, e pela camada de tempo que os cobrem, deixam de pertencer ao autor passando a pertencer a um colectivo. Acho mais interessante quando estes espaços têm outras camadas de intervenção, de outros que não o próprio autor, podendo ser então verdadeiramente polémicas, uma resposta de outro tempo. Assim é uma espécie de balde de água fria, do género "-Quem é que fez isto à Gulbenkian?!Ah,está bem, foi o Ribeiro Telles..."

18/1/06 23:33  
Anonymous Anónimo disse...

Eu fui com o Ribeiro Telles à Gulbenkian, numa visita em que ele explicou quais seriam as novas intervenções. Não querendo perder muito tempo a explicar (ele é muito acessível, e se quiserem perguntem-lhe), na altura achei que sim, que faziam todo o sentido.
As mudanças não são de todo drásticas, e prendiam-se bastante com questões de natureza ecológica (como era o caso dos espelhos de água, ou do musgo nos muros).
Não acho de modo algum que enquanto um artista possa requalificar os seus próprios projectos, estes devam ser atribuídos a outros. Isso seria uma ofensa, até porque, mesmo que haja muita gente descontente com o actual projecto, antes não se sabia o que iria ser feito.
Na dita viagem à Gulbenkian todos oa meus colegas fizeram comentários semelhantes aos vossos. Entristece-me ver que na nossa geração, além de raros os que vejo fazer projectos com qualidade, são tantos os que gostam de críticar. Todos criticam, e projectos bons aparecem tão poucos...
Ora deixem o Ribeiro Telles em paz, e preocupem-se com os novos. Há ateliês a fazer barbaridades pelo país fora, e deles ninguém fala.
Entrámos no pós-modernismo (na minha opinião já estamos mesmo a sair dele), e deveriamos preocupar-nos mais com outras questões que não estejam 100% ligadas à estética. Mas Portugal, como em tudo, anda sempre 30 anos atrás.
O Ribeiro Telles sempre foi um visionário, quem sabe se o não está a ser neste momento. Nós (como sempre foi, aliás) provavelmente ainda não sabemos compreendê-lo. Daqui a 30 anos então podemos falar deste assunto.
Entretanto deveriamos preocupar-nos mais em procurar méritos, evolução e genialidade, em vez de falhas, porque isso ajuda-nos a crescer muito pouco.

28/3/06 01:48  
Anonymous Anónimo disse...

não estarão a deixar-se levar pela nostalgia? A Gulbenkian original tem uma data de pressupostos falsos e tornados de óbvio desinteresse pela evolução das coisas. É um espaço do mais emocionante que há é verdade, mas também é uma Diseylandia do paisagismo, falso, a soar a "pintura de paisagem", com bastantes erros ecológicos etc.. Podiamos tornar o parque Gulbenkian um museu, uma memória nostálgica, o que é uma ideia aceitável embora pessoalmente acho uma oportunidade a não perder podermos assistir ao que tem para dizer e projectar o mesmo paisagista sobre o mesmo sítio (geográfico que o sítio já é outro)tanto tempo passado.

27/9/06 16:10  
Anonymous Anónimo disse...

Não estarão a deixar-se levar pela nostalgia? A Gulbenkian original tem uma data de pressupostos falsos e tornados desinteressantes pela evolução das coisas. É um espaço do mais emocionante que há mas também é uma Diseylandia do paisagismo, falso, a soar a "pintura de paisagem", com bastantes erros ecológicos etc.. Podíamos tornar o parque Gulbenkian um museu, uma memória nostálgica, é uma ideia aceitável embora pessoalmente acho uma oportunidade a não perder podermos assistir ao que tem para dizer e projectar o mesmo paisagista sobre mesmo sítio (geográfico que o sítio é já outro)tanto tempo passado.

27/9/06 16:19  
Blogger pedro disse...

Caro João Marques-da-Cruz, agradeço-lhe imenso o seu comentário, até porque não temos tido muitos e sempre que alguém surge com a sua opinião ficamos sempre muito entusiasmados por aqui. De facto não posso discordar mais com a sua opinião. Houve coisas que se fizeram nestas renovações muito interessantes, por exemplo, ao nível da plantação. Não compreendo muito bem o que considera como erros ecológicos num jardim totalmente fabricado que foi assente quase todo na cobertura das caves dos edifícios. E existem de facto muitas disneylands, ou melhor, grandes empreitadas de decoração paisagística, em Portugal que infelizmente têm definido uma imagem do arquitecto paisagista bem dificil de alterar (é enorme a quantidade de pessoas que me pedem para fazer um arranjo!!) mas nunca incluiría a Gulbenkian nessa categoria. A Gulbenkian tem sido um espaço extraordinário em Lisboa. Sendo ele fabricado consegue libertar a autoria e entregar a experiência a cada um. Eu hoje vejo o que o mesmo arquitecto paisagista tem para dizer sobre o mesmo espaço e penso que ele já teve um discurso mais interessante.

29/9/06 02:16  

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