Sempre em férias
Não sou muito fã do chamado processo Polis. Inicialmente, deixei-me entusiasmar com a série de coisas diferentes e novas que uma grande quantidade de cidades poderia vir a experimentar, desde as pontes de peões na Covilhã, por cima dos vales da Carpinteira e da Goldra, tornando a vida mais fácil, à detalhada recentralização funcional do Cacém, que pretenderia dar sentido à densidade; da resignificação da Cava do Viriato, em Viseu, um parque urbano com matriz arqueológica, à marginal de Vila do Conde, com as discotecas, piscinas e bares a justificarem o novo picadeiro; da despoluição dos rios urbanos, como o Fervença, em Bragança, e a criação de novas zonas de distensão, à consensual intervenção nas praias, com a demolição dos barracos clandestinos sobre as dunas e alguma disciplina automóvel para os dias de Verão antes da chegada aos areais.
Depois, comecei a perceber que da maior parte das boas intenções anunciadas antes, quer por cansaço dos intérpretes envolvidos quer pelos costumeiros cortes orçamentais, iam desaparecendo as coisas diferentes e novas e só ia ficando o enorme manto igualitário e pobre a que ultimamente se chama «qualidade de vida»: zonas «só para peões», trilhos «só para bicicletas», pistas «só para ‘jogging’», relvados decorados por jardineiros abstraccionistas, bancos esquisitos, muitos «palitos», para evitar a passagem dos carros, e muita madeira, preferencialmente cortada em «deck», como nos jardins pré-fabricados do Aki. Era o triunfo do estilo «Expo», do estilo «parque temático», do estilo «estamos-sempre-em-férias».
Tudo sistemas que relevam de uma perspectiva de funcionalização da vida e dos vários momentos da vida. Uma enorme ânsia em preencher os vazios do quotidiano com «objectivos» de lazer, sendo que o lazer talvez seja o contrário do ócio; no «lazer» está-se entretido, a «matar o tempo», não restando muito tempo livre para o pensamento.
Os rios e os parques e as praias não seriam, então, saborosas mais-valias que se descobrissem por detrás da agitada cidade em movimento, momentos de doçura contrastada, numa pausa momentânea dessa construção maior do homem que são as cidades, mas apenas uma espécie de negação da própria ideia de vivermos juntos, mito «escapista» que congrega em si as várias confusões da cultura dominante.
Parece que já não se pode ver um rio pelo meio dos guindastes ou contentores e namorar por ali, meio escondido, mas que tudo terá de passar por uma marginal empedrada «devolvida» à população; parece que já não se pode chegar a uma praia, depois de um pinhal, e «comichar» umas cadelinhas abertas em azeite e alho, umas cervejas frescas num sítio qualquer manhoso às cores, mas já só triângulos de sandes de fiambre pré-empacotadas no dia anterior em casotas arregimentadas de madeira à vista com «música» a dar «qualidade» à praia (este serviço encerra às 18h00).
Por outro lado, existe um fenómeno curioso no processo meio higienista e entorpecedor a que se chamou Polis (mas que talvez se devesse ter chamado «Weekend», dada a distância a que as diversas iniciativas vão ficando de uma ideia que não seja só «desportista» da cidade).
Sente-se uma febre, uma «moda», uma vontade de copiar em todos os sítios do país a onda «Expo», que acaba por ser muito semelhante a outra situação de outro fim de século (o de há 100 anos) que atravessou as diversas cidades da Europa e que em Portugal deixou tantos vestígios: falo da vontade dos «Boulevards» ou das «Avenidas», que se abriram por todo o lado e cujo modelo foi a «Liberdade», em Lisboa, e mais as colecções de jardins públicos que, coincidentemente, tiveram como origem o Passeio Público, também lisboeta.
Nessa altura, Portugal foi ficando inundado de pequenos e médios jardins e de mais ou menos forçadas avenidas, muitas das vezes direccionadas à chegada do caminho-de-ferro, as Avenidas da Estação. Mas nos «passeios públicos», ou nos «jardins públicos», apesar do tom artificialmente «naturalista», procurava-se ainda a urbanidade dos encontros e não tanto um certo «autismo solitário» que o «estilo Polis» me parece promover e encorajar.
O «passeio», em Lisboa, era feito para o olhar, para o engate, para a parada, para a inveja, para a vaidade, para os negócios, para a representação, para os casamentos arranjados e para os arranjinhos dos casados; era um lugar de cruzamentos e de trocas, à maneira do século XIX, claro, e o hábito estendia-se à «província», com as quermesses, os bailes de Verão e os beijos escapados por baixo e na sombra de um oportuno salgueiro.
A nuvem de pó, o cheiro da luz do gás, Lisboa pequena, mas o «passeio», apesar de cruelmente classista, um lugar de reunião, de imprevisto, diálogos, vida, algum contraste, negociação de diferenças, poetas, viúvas, comerciantes, pelintras, bêbados, solteiras, adolescentes, burguesinhas, urbanidade.
As benfeitorias Polis, na sua grande maioria, parecem só lugares para desportos individuais, carrinhos de bebé ou casalinhos contentes; são embelezamentos magros, com muitas fontes, poldras, laguitos para gelar no Inverno e irritantes peças da chamada «arte pública».
Depois, comecei a perceber que da maior parte das boas intenções anunciadas antes, quer por cansaço dos intérpretes envolvidos quer pelos costumeiros cortes orçamentais, iam desaparecendo as coisas diferentes e novas e só ia ficando o enorme manto igualitário e pobre a que ultimamente se chama «qualidade de vida»: zonas «só para peões», trilhos «só para bicicletas», pistas «só para ‘jogging’», relvados decorados por jardineiros abstraccionistas, bancos esquisitos, muitos «palitos», para evitar a passagem dos carros, e muita madeira, preferencialmente cortada em «deck», como nos jardins pré-fabricados do Aki. Era o triunfo do estilo «Expo», do estilo «parque temático», do estilo «estamos-sempre-em-férias».
Tudo sistemas que relevam de uma perspectiva de funcionalização da vida e dos vários momentos da vida. Uma enorme ânsia em preencher os vazios do quotidiano com «objectivos» de lazer, sendo que o lazer talvez seja o contrário do ócio; no «lazer» está-se entretido, a «matar o tempo», não restando muito tempo livre para o pensamento.
Os rios e os parques e as praias não seriam, então, saborosas mais-valias que se descobrissem por detrás da agitada cidade em movimento, momentos de doçura contrastada, numa pausa momentânea dessa construção maior do homem que são as cidades, mas apenas uma espécie de negação da própria ideia de vivermos juntos, mito «escapista» que congrega em si as várias confusões da cultura dominante.
Parece que já não se pode ver um rio pelo meio dos guindastes ou contentores e namorar por ali, meio escondido, mas que tudo terá de passar por uma marginal empedrada «devolvida» à população; parece que já não se pode chegar a uma praia, depois de um pinhal, e «comichar» umas cadelinhas abertas em azeite e alho, umas cervejas frescas num sítio qualquer manhoso às cores, mas já só triângulos de sandes de fiambre pré-empacotadas no dia anterior em casotas arregimentadas de madeira à vista com «música» a dar «qualidade» à praia (este serviço encerra às 18h00).
Por outro lado, existe um fenómeno curioso no processo meio higienista e entorpecedor a que se chamou Polis (mas que talvez se devesse ter chamado «Weekend», dada a distância a que as diversas iniciativas vão ficando de uma ideia que não seja só «desportista» da cidade).
Sente-se uma febre, uma «moda», uma vontade de copiar em todos os sítios do país a onda «Expo», que acaba por ser muito semelhante a outra situação de outro fim de século (o de há 100 anos) que atravessou as diversas cidades da Europa e que em Portugal deixou tantos vestígios: falo da vontade dos «Boulevards» ou das «Avenidas», que se abriram por todo o lado e cujo modelo foi a «Liberdade», em Lisboa, e mais as colecções de jardins públicos que, coincidentemente, tiveram como origem o Passeio Público, também lisboeta.
Nessa altura, Portugal foi ficando inundado de pequenos e médios jardins e de mais ou menos forçadas avenidas, muitas das vezes direccionadas à chegada do caminho-de-ferro, as Avenidas da Estação. Mas nos «passeios públicos», ou nos «jardins públicos», apesar do tom artificialmente «naturalista», procurava-se ainda a urbanidade dos encontros e não tanto um certo «autismo solitário» que o «estilo Polis» me parece promover e encorajar.
O «passeio», em Lisboa, era feito para o olhar, para o engate, para a parada, para a inveja, para a vaidade, para os negócios, para a representação, para os casamentos arranjados e para os arranjinhos dos casados; era um lugar de cruzamentos e de trocas, à maneira do século XIX, claro, e o hábito estendia-se à «província», com as quermesses, os bailes de Verão e os beijos escapados por baixo e na sombra de um oportuno salgueiro.
A nuvem de pó, o cheiro da luz do gás, Lisboa pequena, mas o «passeio», apesar de cruelmente classista, um lugar de reunião, de imprevisto, diálogos, vida, algum contraste, negociação de diferenças, poetas, viúvas, comerciantes, pelintras, bêbados, solteiras, adolescentes, burguesinhas, urbanidade.
As benfeitorias Polis, na sua grande maioria, parecem só lugares para desportos individuais, carrinhos de bebé ou casalinhos contentes; são embelezamentos magros, com muitas fontes, poldras, laguitos para gelar no Inverno e irritantes peças da chamada «arte pública».
Excerto de um artigo publicado por Manuel Graça Dias no suplemento Actual do jornal Expresso de 13 de Maio de 2007.
Nem sempre concordamos com as palavras de MGD. Outras vezes, caem que nem ginjas.
1 Comentários:
Ou cerejas....Ficam-nos a apetecer ainda mais palavras destas.
Enviar um comentário
<< voltar