O local de filmagens
Stalker é um filme de Andrei Tarkovsky de 1979. O filme pode ser dividido segundo dois critérios visuais: o primeiro, em tons sépia (porque o sépia suja todas as imagens, cobre de lama paredes, rostos, roupas) com planos da cidade onde Stalker vive; e o segundo, num deslumbrante poema às intensidades da natureza, agora já na interdita Zona. A Zona é um lugar contaminado, poluído pelos escombros da abandonada fábrica, o óleo é ainda visível na superfície da água ainda que peixes insistam em lá viver. Na Zona, a água inunda o terreno, ensopa a terra, predominando ainda na chuva, no rio, na cascata, no interior das casas, sempre a água, translúcida ainda que poluída. É um hábito de Stalker levar pessoas para a Zona a troco de algum dinheiro. Desta feita, conduz o Professor (ou a Ciência) e o Escritor (ou a Arte) para a Zona com o objectivo de alcançarem a sala da esperança onde os desejos se tornam realidade e de onde quase ninguém regressa.
Qual a origem do misticismo do lugar? No início do filme fala-se de um meteorito que caíra e destruíra a vila mas esse contacto alienígena, justificaria os processos de auto-conhecimento pelos quais os seus visitantes involuntariamente passam? A perigosidade de entrar na Zona é imensa e incalculável: a todo o instante mudam as armadilhas, muda a fisionomia do terreno, perigosidade avivada pelo facto de não se poder andar pelo caminho mais curto nem se poder voltar atrás. É verdade que há indícios do terreno mudar, mas também há indícios de tudo ser criação abusiva de Stalker, o único que conhece as regras da Zona. As outras personagens também duvidam e perguntam a Stalker como é que ele sabe que ali se podem realizar os desejos. Ele simplesmente sabe. A filmagem decorreu em parte na Estónia, perto de Tallin, num campo radioactivo, partículas químicas que terão alimentado a ideia de lugar como organismo vivo – que se desloca, que deseja, que engana, que respira e que dialoga com os humanos.
Cada plano, nasce no local da filmagem e não na mesa de montagem porque a montagem, a reorganização artificial dos planos fixos, sem duração, não é fiel à matéria-prima do cinema: o tempo. Por este motivo, são poucos e longos os planos nos filmes de Tarkovsky, porque, idealmente, o tempo seria o único agente no cinema tornando o realizador o canal privilegiado de passagem dessa intensidade, intermediário que preserva a pureza da duração registada no local, a pressão da passagem do tempo. Stalker pertence ao lugar tanto como a aranha que lhe passa nos dedos. Na impossibilidade de mostrar a pressão do tempo em imagens fixas do filme, opto por mostrar em movimento porque só enquanto estão em movimento, estas imagens existem.
4 Comentários:
"Como libertar o tempo (ou duração) da montagem (ou movimento)?"
ou
como libertar o lugar(ou ser) do espaço (ou estar)?
João, precisamente, esse é o maior desafio da arquitectura e da paisagem.
volta sempre.
se bem que aqui a palavra "libertar" me faça alguma impressão.acho que não se trata de libertar. presumo que seja mais "trabalhar-com". desculpa-me a heideggeriana pretensão, o ser, o lugar, é matéria de reflexão e de crítica. "libertar" soa-me a soltar, sem mais, sem essa "invenção de um mundo", que é trabalho do paisagismo e da arquitectura.
no caso do cinema está relacionado com a função da montagem: como independência da duração, sem um controlo exterior. no lugar, parece-me que acontece o mesmo; se o estar tem coordenadas certas, o ser ou o lugar não, espacio-temporalmente não tem regras. se quiseres pegar no Heidegger, não há regras (porque as reacções e interpretações são livres) para a função do homem.é difícil encontrar um gps para um lugar.
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