Desistir
"O discurso económico foi invadindo de tal forma a forma como pensamos a sociedade, a cultura e a política que passou a ser hegemónico. Com a chegada da famigerada crise poder-se-ia pensar que a situação se inverteria. Qual quê. Intensificou-se.
Hoje liga-se a TV, ou lêem-se os jornais, e lá estão eles com a retórica das "novas metas que temos de nos propor", dos "novos desígnios que têm de ser alcançados" ou dos "novos paradigmas que têm de ser implementados", enquanto analisam com minúcia as oscilações decimais do PIB. Os actores, e as medidas, que conduziram à doença são apresentados como sendo a mezinha.
Poder-se-ia pensar que a maior parte de nós estaria farta desta situação. Mas não. Olho à volta e só oiço pessoas a pedir mais acção. Ou seja, mais do mesmo. Agir sem mudar a forma de pensar. Tentar resolver os problemas com a antiga consciência que os criou. Mais tentativas de melhorar a produtividade, aumentar o PIB, reduzir o défice, acordar de madrugada, trabalhar que se farta, passar horas a fio no trânsito, ter uma boa atitude profissional, imitar os que estão no pelotão da frente. E nunca conseguindo.
Corremos de um lado para o outro, fazemos greves, assinamos abaixo-assinados, enchemos as caixas de email dos amigos com os mais diversos protestos (é a libelinha que está em extinção, é a polícia que bateu em alguém, é a crise que nos põe a pensar no que se poderia fazer se não fosse a crise), nivelando-os, numa espécie de hipermercado dos protestos. Não se deve reclamar?
Sim. Mas também aí é preciso inventar. Às tantas já não se percebe sequer porque o fazemos. Vivemos imbuídos de desejo permanente, logo, na insatisfação permanente. Queremos sempre tudo. Queremos sempre mais. E qualquer dia, depois de nos fartarmos de Sócrates, ou de outro qualquer, diremos mal dos que ganham apenas um pouco mais, e vamos andar todos à batatada.
Dizem-nos que não podemos desistir. Que temos de continuar. Que somos necessários. E nós lá vamos, voluntariosos, com os avanços científicos e tecnológicos à mistura, embora preferíssemos saúde acessível, educação de qualidade, transportes públicos ágeis, moradia decente, redução das desigualdades e direito ao lazer.
Damos o litro para supostamente amenizar os efeitos da crise, mas suprimimos as causas. Andamos em círculos. Não há maneira de lhes agradar, a eles, aos mercados, ao FMI, à União Europeia, ou lá a quem é. Isto só vai mudar quando desistirmos. Quando passarmos a entrar às 9 e a sair às 5 como é normal e, às vezes, até um pouco mais cedo, para irmos ao jardim, ao cinema, ou namorar, sem o sentimento de culpa de termos que fazer horas extraordinárias. Para quê? Pensem bem. Será que isto pioraria?
Apetece deixar andar. Não o "deixa andar" saloio de sempre. Mas desistir para clarificar. Para nos deixarmos de ambiguidades. Para não termos a sensação de que aquilo que estamos a tentar salvar é, afinal, a razão do mal. É alimentar o monstro. Desistir para nos voltarmos a concentrar no essencial, traçar um novo começo, revelar novas possibilidades. Desistir, sem resignação. Mas para renascer."
Desistir por Vitor Belanciano in Público 1 de dezembro de 2010
Hoje liga-se a TV, ou lêem-se os jornais, e lá estão eles com a retórica das "novas metas que temos de nos propor", dos "novos desígnios que têm de ser alcançados" ou dos "novos paradigmas que têm de ser implementados", enquanto analisam com minúcia as oscilações decimais do PIB. Os actores, e as medidas, que conduziram à doença são apresentados como sendo a mezinha.
Poder-se-ia pensar que a maior parte de nós estaria farta desta situação. Mas não. Olho à volta e só oiço pessoas a pedir mais acção. Ou seja, mais do mesmo. Agir sem mudar a forma de pensar. Tentar resolver os problemas com a antiga consciência que os criou. Mais tentativas de melhorar a produtividade, aumentar o PIB, reduzir o défice, acordar de madrugada, trabalhar que se farta, passar horas a fio no trânsito, ter uma boa atitude profissional, imitar os que estão no pelotão da frente. E nunca conseguindo.
Corremos de um lado para o outro, fazemos greves, assinamos abaixo-assinados, enchemos as caixas de email dos amigos com os mais diversos protestos (é a libelinha que está em extinção, é a polícia que bateu em alguém, é a crise que nos põe a pensar no que se poderia fazer se não fosse a crise), nivelando-os, numa espécie de hipermercado dos protestos. Não se deve reclamar?
Sim. Mas também aí é preciso inventar. Às tantas já não se percebe sequer porque o fazemos. Vivemos imbuídos de desejo permanente, logo, na insatisfação permanente. Queremos sempre tudo. Queremos sempre mais. E qualquer dia, depois de nos fartarmos de Sócrates, ou de outro qualquer, diremos mal dos que ganham apenas um pouco mais, e vamos andar todos à batatada.
Dizem-nos que não podemos desistir. Que temos de continuar. Que somos necessários. E nós lá vamos, voluntariosos, com os avanços científicos e tecnológicos à mistura, embora preferíssemos saúde acessível, educação de qualidade, transportes públicos ágeis, moradia decente, redução das desigualdades e direito ao lazer.
Damos o litro para supostamente amenizar os efeitos da crise, mas suprimimos as causas. Andamos em círculos. Não há maneira de lhes agradar, a eles, aos mercados, ao FMI, à União Europeia, ou lá a quem é. Isto só vai mudar quando desistirmos. Quando passarmos a entrar às 9 e a sair às 5 como é normal e, às vezes, até um pouco mais cedo, para irmos ao jardim, ao cinema, ou namorar, sem o sentimento de culpa de termos que fazer horas extraordinárias. Para quê? Pensem bem. Será que isto pioraria?
Apetece deixar andar. Não o "deixa andar" saloio de sempre. Mas desistir para clarificar. Para nos deixarmos de ambiguidades. Para não termos a sensação de que aquilo que estamos a tentar salvar é, afinal, a razão do mal. É alimentar o monstro. Desistir para nos voltarmos a concentrar no essencial, traçar um novo começo, revelar novas possibilidades. Desistir, sem resignação. Mas para renascer."
Desistir por Vitor Belanciano in Público 1 de dezembro de 2010
Fotograma . Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives . Apichatpong Weerasethakul, 2010