Em jeito de complemento do post anterior, O génio de Malick, o devoto, pareceu-me interessante acrescentar algumas observações ao filme a Árvore da Vida. Se as imagens de microscopia e macroscopia remetem-nos imediatamente para o 2001: A Space Odyssey, as imagens da vida terrena remetem-nos para o subúrbio americano dos anos 50. E porquê o subúrbio americano dos anos 50? E já agora, porquê a árvore?
A árvore da vida tem diversas representações simbólicas, sendo usada por quase todas as religiões, mitologias e filosofias. De acordo com a Encyclopædia Britannica, a árvore do conhecimento cria a ligação entre o céu e o mundo inferior, e a árvore da vida a ligação entre todas as formas de criação, sendo ambas formas da árvore do mundo ou da árvore cósmica. Malick recorre assim ao simbolismo da árvore, como tantos outros, para fazer a ligação entre os mundos. Mas se a árvore faz essa ligação, e no próprio filme ela teletransporta-nos entre o cósmico e o mundano, as suas raízes estão assentes no subúrbio. A referência ao subúrbio americano dos anos 50 é feita, em primeiro lugar, porque o próprio Terence Malick cresceu nele, em Waco, Texas, durante o seu período de maior expansão – o pós-guerra. O filme é também ele rodado pelo Texas, nos locais de infância de Malick. A casa localiza-se em Smithville, uma pequena cidade de 3000 habitantes. À primeira vista, e através da ausente personagem de Jack em adulto (Sean Penn), Malick quase que nos deixa cair na simples dicotomia cidade vs. natureza, mostrando-nos a cidade como um local onde o homem perde a sua ligação ao mundo natural e por consequência aos outros. De facto, o subúrbio americano dos 50, assim como muitos outros subúrbios, representa um período muito importante e de grande imaginação. A liberdade (ver as cenas dos miúdos pelo bairro), a proximidade de uma natureza ainda hipoteticamente intocada (ver a cena dos irmãos junto ao rio, onde chegam de bicicleta), a amplitude do espaço, o vago, e a possibilidade de ter um jardim onde se desenrola uma grande parte da vida familiar. O subúrbio americano é já uma reinterpretação pecaminosa do fascínio do wilderness americano, pois se o subúrbio já possui um enorme número de transformações da paisagem e tem os olhos postos na cidade, ele ainda proporciona uma ligação muito forte ao mundo natural, podendo-se caracterizar por ser uma espécie de estado intermédio. Deve-se notar a ainda importante presença da igreja, que nos indica que o homem ainda possui a capacidade de se transcender, compreender o outro e viver em comunhão (mesmo que seja cada vez mais falsa).
É a genética do sonho americano do séc. XX que desenha o subúrbio da classe média, na possibilidade do acesso democrático a todos os bens, na igualdade social (sem aristocracia e nobreza) e na igualdade de oportunidades.
É também no fracasso empresarial de O’Brien (Brad Pitt) que parte do sonho se desmorona e ao mesmo tempo se revela. A cidade/industria não retribui o que este esperava, e só pela frustração compreende que o mais importante sempre estivera naquele jardim. Esta reconciliação com a vida só lhe é possível por conseguir compreender o transcendente, através de Bach.
O filho Jack (Sean Penn), mais do que uma pessoa, representa o homem desligado, perdido na cidade. Não por acaso, é representado pelo arquitecto que trabalha num impessoal open space de um impessoal arranha-céus e onde, provavelmente, reproduz modelos semelhantes aos do local em que trabalha. É a plantação de uma árvore, junto a um desses arranha-céus, que o faz relembrar o irmão. A árvore plantada é um símbolo que lhe relembra outras árvores, sobre as quais outro estado de vida se desenrolou. Quando Jack se “reconecta” com a vida, o que Malick nos mostra é um horizonte vasto, o mar, a praia, onde tudo é natureza bruta.
O que Malick nos conta não é necessariamente um simples confronto entre cidade e natureza, homem contra o artificial. As crianças continuam felizes quando são vaporizadas por DDT. Trata-se antes da possibilidade de nos ligarmos à energia do cosmos e da vida, de nos repensarmos enquanto acaso que somos no mundo. E para isso tanto contribuem as paisagens sublimes, as partituras de Bach, ou a sensação de liberdade das crianças. O essencial é a possibilidade de imaginação.
É neste estado intermédio do subúrbio que Malick compreende um momento particular da sua história e da de muitos outros. É na mistura única e irrepetível de um boom de população e de algum bem estar económico da classe média (recorde-se as imagens de decadência dos Afro-americanos), sobrepostos numa paisagem ainda pouco determinada e com uma grande presença de natureza, que decorre um momento de vida, imaginação e comunhão que gera memórias únicas. A cena do sapo é central neste aspecto, pois nunca poderia decorrer na cidade, num zoo ou num parque natural. É ainda dentro desta ideia, que aproveito para recordar um dos mais belos posts do Verdete, e que Malick quase parece ter copiado para recriar a personagem de Jack. No entanto não podemos ignorar a importância central que o filme dá à árvore, ao rio, à floresta, às correntes de água, ao jardim, à casa aberta para o exterior, como elementos de leitura e participação da transcendência e de relocalização do humano na cosmogenia da grande ópera da vida. Tal como para Schopenhauer, the feeling of the beautiful is pleasure in simply seeing a benign object. The feeling of the sublime, however, is pleasure in seeing an overpowering or vast malignant object of great magnitude, one that could destroy the observer. É isso que faz de a Árvore da Vida um filme entre o belo e o sublime.
Como últimas nota de curiosidade, ficam aqui três vídeos sobre o transplante da árvore, um carvalho, que terá sido replantado após as filmagens no seu lugar original (video1, video2 e video 3), e um excelente ensaio sobre o cinema de Malick, escrito por Adrian Martin.