5.24.2006

Igualada

Várias vezes nos deparamos com sítios que na realidade não correspondem à imagem criada por leituras diversas que acumulámos ao longo dos anos.
Existem outros cujas características anteriormente enunciadas, apesar de gerarem uma aproximação, não o explicam claramente. As fotografias são muitas, os textos também, mas o lugar revela-se outro quando próximo.
Quando falamos ou ouvimos falar no cemitério de Igualada, o termo recorrente é claramente o sentido de apropriação do território, o forte vínculo a uma terra talhada, extorquida pelo homem ávido de minerais. Como se a sua concepção se regrasse a partir dos princípios que constróem a paisagem que o envolve.
O cemitério é, de facto, exemplar na fusão entre arquitectura e paisagem, na procura de uma identidade intrínseca a uma realidade que não será próxima a um estranho que olha pela primeira vez os montes decepados pelo severo trabalho das máquinas. A sua construção, atenta ao lugar, incorpora a sua matéria prima na elaboração de um recinto distinto, sagrado de sua natureza. Os calhaus nos muros de gabiões, as gravilhas no pavimento compactado, o betão derivado da pedra extraída do local.
Enric Miralles e Carme Pinos subvertem a ideia do típico cemitério mediterrânico, devolvendo aos mortos o lugar que lhes pertence no leito de uma antiga pedreira, em contraponto ao recinto murado implantado no cimo de um monte com o qual nos familiarizámos. Questionando o fechar de um ciclo por meio de uma inversão morfológica, assinalam uma obra notável, de sentido crítico, não só antropológico mas também espacial, face a um território adverso, que a tal obrigava.
Um fosso delimitado e suportado por muros de gabiões que incorporam os nichos, os ulmeiros que garantem a sombra e descanso dos mortos e também dos vivos que por lá passam, o largo com amendoeiras que os acolhe, o monte que espreita o lugar. No chão, as tábuas que cristalizam os tempos idos da construção.
Igualada é assim. Mas é também uma cidade com um centro ausente, sem movimento, onde o tempo teima em não passar. À entrada um hotel de nome “América” desvia-nos o olhar para a periferia, onde o recreio acontece sob um calor intenso entre os montes de terra em constante movimento. Há quem atire pedras para o vazio e quem use os campos ondulados para corridas de automóveis. Os homens demarcam-se da luz difusa que incide sobre as terras que teimam em deslocar-se. Desta realidade, ninguém nos falara.

5.20.2006

The Gates 1979-2005


Em The Gates, Christo and Jeanne-Claude conseguem concretizar em pleno Central Park as teorias que partilham enquanto Artistas Ambientalistas. Ao contrário de outros artistas contemporâneos dedicados às artes públicas e efémeras, Christo e Jeanne-Claude não se consideram Land Artist pois o seu objectivo é, precisamente, não interferir no mundo que encontram; não mexer em nada, nem nas pedras, raízes ou vegetação que apareçam no caminho. Este será talvez o seu maior feito: transformar a paisagem de uma forma temporária para, no fim, reciclar a obra de arte e devolver, intacta, a paisagem que serviu os propósitos. O que suscita importantes questões como, por exemplo, o carácter irreversível que determinadas intervenções artísticas podem criar no meio ambiente. Nestes casos, Land Art deixa de ser Environmental Art.

Como se pode ler no site , por estes motivos, Christo e Jeanne-Claude julgam ser mais adequado tratá-los por Environmental Artist. Artistas ambientalistas mas não conceptuais ou abstractos, artistas do meio ambiente rural ou citadino mas nunca do meio ambiente desabitado. Ainda que em grande escala, os trabalhos como The Gates, devem ser vistos de baixo, pela perspectiva humana, e não, como por vezes se julga, em panorâmica, com uma vista aérea. É uma experiência para se concretizar numa caminhada, sempre segundo a escala do olhar humano.

Um dos problemas inerentes (mas próprios) a este tipo de expressão artística é o facto de ser temporária e, para quem não pode estar presente, resta socorrer-se do material fotográfico. Torna-se útil para a compreensão deste trabalho em concreto o livro Christo and Jeanne-Claude: The Gates, Central Park, New York City, editado pela Taschen em 2005, com fotografias de Wolfgang Volz que acompanham o trabalho desde o início, desde o projecto preparatório até à montagem finalização, passando pela manutenção e construção das estruturas. É de facto um excelente livro (a 2º edição de Fevereiro é mais completa pois acresce de fotografias da instalação já realizada) para conhecermos melhor os métodos de trabalho desta dupla tão singular e para tentarmos compreender os motivos subjacentes ao paradoxo entre o enorme intervalo temporal do projecto e a curta duração de exposição. Assim, se durante 25 anos pensaram e trabalharam em The Gates, apenas durante 16 dias foi posto a conhecer e a experimentar.

5.16.2006

Spy Hunter


Entre o jardim egípcio de Sennufer, e o jogo ‘Spy Hunter’ para o ZX Spectrum 48K distam aí uns 3500 anos. Esse computador germinal da nova era da informática, traz à luz a mesma fresca ideia de Paraíso e de Primavera. Parece-me que quando se descobre uma nova tecnologia, seja ela arado ou microprocessador, começa-se de novo a representar um esquema a duas dimensões onde as árvores surgem rebatidas no plano do chão. Apetece parar o carro à beira da estrada, desligar a metralhadora, e ficar a ver passar as motas-armadilha e os helicópteros com foguetões.

5.08.2006

Fonte da Bica

O geólogo A.M. Galopim de Carvalho, director do Museu Nacional de História Natural e autor de inúmeros livros, descreve-nos a formação de rochas salinas ou evaporíticas como as que fomentaram a fundação do complexo da Fonte de Bica. Pensa-se que as rochas salinas presentes nessa zona foram formadas pela precipitação de sais alcalinos provenientes da evaporação das águas salgadas de um ambiente lagunar há cerca de 200 milhões de anos. Algo semelhante ao que acontece actualmente no Kara-Bogaz-Gol [kbg], no Mar Cáspio.

imagens do Earth Observatory e da Earthshots
O kbg é uma lagoa pouco profunda que está ligada ao Mar Cáspio por
um estreito canal. As elevadas temperaturas características do
clima local transformam a lagoa num dos sítios mais salgados do planeta.

O curso de um fluxo de águas subterrâneas alimentado pela infiltração da água das chuvas dissolvem os sais de sal-gema (um evaporito essencialmente constituído por halite ou NaCl e geralmente associado a outras impurezas como argila, óxidos de ferro e matéria orgânica) e transportam-nos, dissolvidos em solução, ao longo da complexa rede de vazios do maciço calcário da Serra d’Aire e Candeeiros e que é continuamente alargada pela erosão química e mecânica das águas ricas em dióxido de carbono. A superfície destes territórios é caracterizada pela fraca e pouco desenvolvida rede hidrográfica mas contrapõem-se à intricada rede subterrânea.
Na Fonte da Bica, a 3Km de Rio Maior, foi, em tempos, aberto um poço de água salgada a partir do qual retiram a água (inicialmente por picotas, agora bombeada por um motor) e a distribuem pelas regueiras aos esgoteiros, e destes para os 450 tanques de evaporização denominados de talhos. As infra-estruturas ocupam pouco mais de 2ha de um vale e produzem o sal-gema da Cooperativa Agrícola dos Produtores de Sal de Rio Maior. O trabalho, ainda sazonal, traz todos os Verões alguns agricultores da zona.
A extracção do sal-gema é, no entanto, apenas o primeiro passo de inúmeras indústrias químicas que produzem produtos como o cloro, sódio, ácido clorídrico, hipoclorito de sódio, soda cáustica, carbonato de sódio, sulfato de sódio que, por sua vez, são a base de outras indústrias como a do vidro, de cerâmica, farmacêutica, de detergentes, entre outras.

O sal-gema surge disponível ao homem depois de longos processos de transformação do território, da conjugação de vários factores que, embora indiferentes ao homem, produzem um recurso valorizado e vector de transformação e construção de paisagens, de economias e de comunidades. A atribuição de um valor justificou a transformação da paisagem, a impermeabilização de 2ha de um vale e a constituição de uma micro-cultura muito própria, a dos marinheiros (o nome atribuído aqui aos salineiros).
Mas também o próprio valor sofre flutuações. Antigamente uma mais valia para a economia da zona ribatejana, hoje o ex-libris do turismo no Concelho de Rio Maior. Desta vez o recurso não é só o sal-gema mas também o turismo exploratório da paisagem construída nos últimos séculos para a recolha do sal-gema. Recursos pouco rentáveis actualmente mas que justificam para já a manutenção da exploração salineira. Mais tarde avançarão para o turismo agrícola onde os próprios turistas pagarão para trabalhar nas salinas. Talvez um estrangeiro comprará todo complexo com a promessa de manter a produção de sal-gema e exploração do recurso do turismo. Mesmo assim, pouco a pouco, o recurso será desvalorizado ou esgotado nas suas frentes. Restará o património arqueológico que levará à constituição de um parque cultural no qual serão apresentados e justificados os vectores de transformação da paisagem e daquilo que em tempos foi um valor para comunidades. A falta de financiamento acabará por corroer as infra-estruturas mais modernas e com o tempo, se a profundidade das modificações causadas pela acção do homem no funcionamento dos sistemas o permitir, os próprios sistemas paisagísticos encontrarão caminho e integrarão e dissolverão o complexo salino.
A paisagem e a sua transformação são reguladas em larga escala pelo homem. O homem regendo-se por um conjunto de valores mutáveis identifica quais os recursos que mais lhe interessam num dado momento e altera a paisagem respeitando aquilo que sente como absolutamente necessário. As marcas e a persistência desses sinais deixados na paisagem são proporcionais ao investimento exercido pelo homem e pela capacidade desse mesmo sinal poder ser readaptado às novas contingências. Até que esse sinal deixa totalmente de fazer sentido à luz de novos valores vigentes e entra na penumbra do esquecimento.


Algumas referências:
Galopim de Carvalho, A.M., 1996. Geologia. Morfogénese e Sedimentogénese, Universidade Aberta, Lisboa
Galopim de Carvalho, A.M., 2003. Geologia Sedimentar – I Volume - Sedimentogénese, Âncora Editora, 1ª Edição, Lisboa

Região de Rio Maior
Triplov
Earth Observatory
Earthshots: Satellite Images of Environmental Changes